quarta-feira, outubro 04, 2006

Acerca da filosofia no Ensino Médio

Ao meu ver algumas idéias mal colocadas e fora de foco estão sendo exprimidas no debate acerca da inclusão da Filosofia e da Sociologia no ensino médio. Vou me ater a uma declaração corrente, a saber, a de que “a filosofia e a sociologia não resolvem os problemas da educação média”. Além de totalmente fora de contexto, a asseveração tem uma forte carga de má-fé e até um certo preconceito. Não se trata de colocar a filosofia como apanágio de todos os males, afinal, como já disseram Marx e Engels em A Sagrada família, “idéias nada podem realizar. Para a realização das idéias são necessários homens que ponham em jogo uma força prática”, ou para citar bem contemporaneamente meu mestre e padrinho Gonçalo Palácios, no Jornal Opção do dia 23 à 29 de Julho no ano vigente, “[Q]uem está para resolver os problemas do ensino médio são as autoridades competentes e os membros da sociedade organizada. Somos nós, ou seja, que devemos resolver nossos problemas, não disciplinas”.

Leciono Filosofia na rede estadual e tenho uma convicção: a história da filosofia não é um culto de reverência, mas uma fonte de inspiração. Não se trata de oferecer um marco teórico pronto fechado. Toda fundamentação de plano anual ou bimestral pode ser modificada à luz da prática e ao mesmo tempo, procurando avaliar e aprimorar tal prática.

Lecionar Filosofia na rede estadual é uma pequena missão socrática. E penso ser Sócrates um grande paradigma para nortear as aulas de filosofia. Inspirar em Sócrates é, através do diálogo e por ele próprio, partir da doxa – o que os gregos chamavam de opinião, que estaria ligada ao senso comum, no sentido de idéias preconceituosas, parciais e superficiais – caminhar em busca de uma episteme, ciência, ou um conhecimento mais elaborado. Logo, fazer filosofia não é doutrinação político-partidária, como querem fazer crer alguns boçais de plantão – sem capacidade de enxergar, ou que não querem enxergar, ou estão de má-fé mesmo. A atividade filosófica é em si a busca da verdade, em outras palavras, a sua eterna procura que intenta escapar do senso-comum. Professor Geraldo Faria (eterno mestre) falava em suas críticas e humanistas aulas de língua portuguesa para nós (alunos do Colégio de Aplicação da Faculdade de Educação); “pensar dói, né?” e eu achava graça... Entretanto, hoje vejo a referência socrática na expressão do mestre. A metodologia socrática tinha dois momentos, a saber, a ironia (em grego, ironia quer dizer interrogação) – Sócrates conversava com as pessoas e freqüentemente fazia perguntas, levava seus interlocutores a ver os pontos fracos de suas próprias reflexões, e assim, nesta fase do diálogo a intenção era fazê-los tomar consciência de suas respostas, isto é, das conseqüências que poderiam ser tiradas de suas reflexões, muitas vezes cheias de conceitos parciais, ou seja, idéias pré-concebidas, pré-conceituosas. O segundo momento é a maiêutica (em grego, “fazer o parto” ou “trazer à luz” – a mãe de Sócrates era parteira). Com base no primeiro momento Sócrates permitia que a outra pessoa chegasse a suas próprias conclusões. Assim, Sócrates dialogava com as pessoas criando condições para o uso da razão. Logo, essa fase do diálogo socrático, destinada a concepção de idéias era a maiêutica. Parir idéias essa era a intenção fundamental de Sócrates, ou seja, fazer pensar, refletir, assim como um parto (aqui a referência a um parto normal, claro), e isso não é coisa que se faça sem esforço. Bem, nem quero entrar em uma discussão vizinha que é a questão da motivação dos alunos – tema para um outro artigo.

No entanto, não custa lembrar que o problema da falta de vontade de refletir (aí sim papel da filosofia) é um fato vinculado ao imediatismo inerente a cultura vigente. Assim sendo, um problema demasiadamente complexo que não cabe somente aos quixotescos professores de filosofia, com sua mísera uma aula por semana em cada turma, resolver. A filosofia cumpre o papel de uma espécie de grilo falante, se portando como uma consciência critica das coisas. Talvez, poucas palavras sejam tão usadas em educação como a palavra crítica. No senso comum critica é “meter o pau” ou simplesmente falar mal. Contudo, o que significa crítica? Qual é a sua função? Qual é a relação que se estabelece entre crítica e transformação? Não tenho nesse espaço a pretensão de responder a essas questões. Para ser coerente com a minha perspectiva socrática deixo-as para a livre reflexão. Apenas, gostaria de apontar que as críticas devem, na verdade, ser ponderações, análises e reflexões cuidadosas e responsáveis, intentando sair da mera doxa; lembram do nosso filósofo? Ou seja, a crítica como uma prática de pensamento que trabalha os limites, as fronteiras do possível. Para o filósofo espanhol, Fernando Savater “A crítica desnaturaliza o mundo, o torna mais complexo, menos óbvio, mais produto de contingências que precisam ser exploradas, entendidas e transformadas. A crítica exige ver o mundo como se fosse a primeira vez. Por isso para fazer filosofia é preciso perder algo da fé nas aparências, nas rotinas, nos dogmas”.

Sempre atento para o fato de que nossos desacordos podem estar em nossas diversas visões de mundo, tendo o diálogo filosófico como uma forma de esclarecer, explicar e compreender essas diferenças, e portando revalorizar o diálogo desses desacordos, pois sem elas não teríamos filosofia, nem educação, nem política e nem seres humanos seríamos. E é a partir dessa confrontação que possibilitamos a construção de um mundo.

Para concluir, algumas citações lapidares para essa investida, a primeira de Xavier Rubert de Ventos, em seu Por que filosofia: “Filosofar é chegar a colocar em contato o que sabemos com o que sentimos, o que pensamos com o que fazemos; desconfiar das explicações que satisfazem; arriscar-se, muitas vezes, a ver mais, ou menos do que quisermos ver”. De forma explosiva Nietzsche afirmava em Humano, demasiado Humano: “Não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos seguros delas. Mas, talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las”. Para aqueles que entendem ser irrelevante o contato do jovem com o espírito filosófico, diz Epicuro, filósofo da era helenista: “nunca se protele de filosofar quando se é jovem nem se canse de fazê-lo quando se é velho, pois ninguém é pouco maduro nem demasiadamente maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de se feliz”. Para não restar dúvidas das finalidades da vida e com um pouco do lirismo poético existencialista de Fernando Pessoa: “Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer!”.


Pablo Lenine é professor de Filosofia no ensino público

4 Comentários:

Às 10/10/06 11:57 , Blogger `´é`´ disse...

eh meu caro pablo, eu devo estar meio por fora saca, num ando lendo jornal, nem assistindo tv, apenas lendo umas coisas de paginas de publicação aberta na net, na verdade tenho andado mais pro lado do sul do mexico, acompanhando o que esta rolando por lah, em oaxaca. Mas, enfim, sabe-se que quanto mais boçal pensa-se que é uma afirmação; outras piores ainda estão por vir. E quando as pessoas que "criticam" (metem o pau) no ensino de filosofia e sociolgia no ensino médio, certamente, desejam alunos que saibam ganhar dinheiro em cima dos outros (isso é até redundante neh, existiria um jeito de ganhar dinheiro sem ser em cima dos outros, eu me pergunto?) não estão preocupados com a mudança de valores, não vêem isso como algo mutável, são espiritos velhos por demais, e acostumados ao consentimento, ao silêncio, ao comodismo, e por isso, acostumados a oprimir, rechaçar, e ate mesmo assasinar as idéias que surgerem um novo caminho para os passos da juventude. o mais engraçado é pensar que se fossem aulas de filosofia na administração, ou sociologia dos recursos humanos, algo assim, no paradigma dos livros mais vendidos em aeroportos e shopping center, eles estariam felizes. Mas é triste ver pessoas com tão pouca idade aderirem a esse pensamento sem perceberem que tornam-se espíritos congelados no tempo.

 
Às 10/10/06 12:04 , Blogger Unknown disse...

Eu estou me formando em filosofia e é meu sonho ser professor, mas sinceramente não consegui chegar a um argumento realmente convincente para incluir filosofia no ensino médio, muito embora eu adoraria que isso acontecesse. Não posso deixar de perceber que eu acho filosofia importante principalmente porque sou filósofo. Concordo com o Gonçalo, porém a abertura de um espaço exclusivo da filosofia na escola não irá antigir nenhum aluno que não possa ser atingido pelos professores de outras disciplinas. Nas matérias de História e Geografia principalmente, onde se supõe que os professores entendam um pouco de filosofia, pouco que já suficiente para um aluno de 2 grau. Não seria o caso de mudar os currículos dessas disciplinas ao invés de incluir uma nova?
Filosofia como disciplina depende tanto do interesse do aluno que a maioria dos alunos não apreende nada, e os que apreendem algo o apreenderiam de qualquer forma, porque são interessados. Não acho que valha a pena a inclusão de mais carga no currículo do ensino médio apenas para beneficiar esses poucos interessados. Sinceramente eu gostaria de ser refutado, porque eu quero dar aulas, é uma realização para mim. Mas o que vejo nos casos que conheço é que a maioria dos professores de filosofia se concentra demais nos seus filósofos favoritos e esqueçe a didática.
Eu não participei do debate do currículo para a filosofia, por esse simples fato vocês podem ignorar minha opinião, mesmo que ela seja valida. Se eu me importasse eu teria participado.

 
Às 10/10/06 20:18 , Anonymous Anônimo disse...

a filosofia parece sofrer do mesmo preconceito direcionado à arte. ambas foram destinadas a salvar o mundo, mas as pessoas querem insistir que essa salvação seja tão racional, tão pragmática, de um pragmatismo tão burro, que só enxerga resultados imediatos. aí, é claro, vão se frustrar. simplesmente porque não entenderam onde é que elas podem agir. lamentável...

 
Às 31/10/06 12:11 , Anonymous Anônimo disse...

Alguns recortes do PCN:
Em primeiro lugar, do ponto de vista das finalidades do Ensino Médio, estabelecidas no Artigo 35 da LDB, destaca-se: “o aprimoramento do educando, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (inciso III);
Sinceramente, no atual currículo qual a disciplina voltada para o pensamento crítico? Este é o papel da filosofia.
Em segundo lugar, do ponto de vista das diretrizes curriculares para o Ensino Médio, definidas pela LDB, em seu Artigo 36, § 1o destaca-se: “o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (inciso III).
Sinceramente, É possível ser cidadão sem ter consciência de sua capacidade e possibilidade de crítica e auto-crítica? Qual disciplina trabalha esta possibilidade?

A NECESSIDADE DA FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO É PARA ENSINAR AOS ALUNOS A PARAREM DE BUSCAR NECESSIDADE PRÁTICA EM TUDO.

O “para quê?” das coisas da vida pode ser importante, mas é preciso ter em mente que a resposta a esta pergunta não interessa sempre.O utilitarismo é só um aspecto da sociedade, uma escolha para alguns momentos ou para algumas pessoas, mas não uma determinação da sociedade.
O “por quê” de naturalmente as pessoas sempre buscarem o “para quê?” das coisas é o assunto da filosofia no ensino médio, a meu ver pelo menos.

 

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