Especulações sobre a terceira idade
Na porta da minha casa: descendo do carro, segurando inúmeras sacolas. Um par de sandálias no pé e outro nas mãos. Uma senhorinha por ali, bem arrumada em sua tarde de passeio, interessou-se pela cena.
– Ei, você podia calçar essa aí na sua mão e me dar a outra! – enérgica.
Heim? Será maluca? Ah, não podia não.
Acontece sempre. Tenho relatos – de sangue e de ouvido – que me induzem a acreditar que essa aí é uma característica da terceira idade. Mas haveria explicação?
Ainda não estou velha, embora o seja às vezes de espírito. E não posso acessar a experiência do outro. Como, em verdade, não podemos nunca. Por isso, valido a especulação.
Não é a terceira idade a consciência da proximidade da morte? Ué, então a gente deveria se desapegar da materialidade do mundo e recolher-se ao espírito. Ou, dada a circularidade da vida, seria essa fase um retorno à infância? Diz muito isso a psicologia. Gostaria era de ver um psicólogo fundamentar essa lógica: o desgaste fisiológico empreendido pelo tempo altera as faculdades mentais, tornando-as parecidas com as das crianças, que ainda não as têm completamente formadas.
É, pelo jeito, lógica não explica nada. Quem não conhece a piada do português? Só podemos olhar os fatos, com certa surpresa. Mas, que é fato é. Numa festa promovida para a terceira idade, tiveram de distribuir salgadinhos em pratos individuais. Experiências anteriores mostraram que, quando o banquete é servido conjuntamente, desaparece em segundos para figurar não nos estômagos saciados, mas nos sorrisos dissimulados de satisfação e nas cavidades de bolsas com fundos falsos.
Ou: congresso da terceira idade. Uma centena e meia de idosos no avião seguindo para o destino do encontro. O aviso ao final do vôo não precisou ser feito: “Por favor, vamos recolher toda sobra da refeição para preparar a cabine para novos passageiros”. Tudo guardadinho, até saco antiespalhamento de refluxo. Um souvenir.
Aliás, talvez a lógica seja esta mesmo: desapego material. Não gastar dinheiro, quando se tem. Quando não se tem, ter sem comprar. Pedir sempre. Às vezes, não.
(Poderia, como réplica, ter argumentado a duplicidade do sapato, já que ela usava o seu, talvez em melhor estado que o meu.)
suene honorato
P.S.: Mas, a quem freqüenta o Ponto 18, a velhice é uma boneca, cuidadosa e levemente maquiada, trajando um vestido com gola de renda, vendendo sapatos para recém-nascidos. Confeccionados por suas mãos sem calos.
4 Comentários:
Até que enfim um texto novo!!Parabéns Suene pelos seus textos! Vc escreve muito bem, adoro ler os seus textos, você deveria postá-los com mais frequência p/não termos que esperar tantooo!Você deveria escrever logo um livro pois é muito talentosa!
Este comentário foi removido pelo autor.
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Também gostei, Mariana! E um dia, bem longe, deve sair livro disso. Boas as sugestões de reflexão sobre a velhice que enculca a Suene. Uma crônica surreal sobre a velhice que vale muito a pena. Tanto pelas questões investigadas, quanto pela linguagem seca. Algo ao modo de Dalton Trevisam. Curioso...
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E a quem se interessar, acho que até o fim do ano sai uma edição. Atualmente a vida anda bastante atribulada pra todo mundo: filhos, mestrado, trabalho... mas vamos fazer essa edição e decidir o futuro do demo!
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Saudade de fazer voar um céu na cidade!
Abraço a todos!
Espero eu, que um belo dia Deus olhe pela janela e com muita pena, me de um terço do talento de redigir da minha querida ex professora; Suene Honorato.
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