Um problema de gramática, a quem interessar... Ou: o jogo dos vários erros
A Secretaria de Transportes de Nerópolis disponibiliza ônibus para a capital aos estudantes. Com o intuito de melhorar a qualidade do transporte, entregou o seguinte aviso aos usuários:
ATENÇÃO
- NÃO JOGAR LIXO NO CHÃO DO ÔNIBUS;
- NÃO PISAR NAS POLTRONAS DO ÔNIBUS;
- NÃO SENTAR NO BRAÇO DAS POLTRONAS DO ÔNIBUS;
- NÃO FALAR ALTO DENTRO DO ÔNIBUS;
- NÃO FAZER BAGUNÇA AO ENTRAR NO ÔNIBUS;
- NÃO ALIMENTAR DENTRO DO ÔNIBUS;
- RESPEITAR OS COLEGAS DENTRO DO ÔNIBUS CASO ESTEJAM DORMINDO.
OBS: caso ocorra reclamações e fujam das regras estará sujeito a exclusão do ônibus.
(POIS DEVEMOS MANTER A ÉTICA, O RESPEITO E A LIMPEZA DO ÔNIBUS. POR QUE ELE TAMBÉM E SEU, E VOCÊ TAMBÉM TEM QUE CUIDAR. “PRESERVE”)
Pois bem, o “aviso” tem a assinatura do secretário do transporte neropolitano, sr. Leoncio Pinto de Mendonça. Com isso, quer elevar-se à categoria de documento formal. Mas nem só de assinatura se faz um documento...
Diz-se que, se a mensagem foi transmitida, é porque a linguagem é eficiente. Eu mesma partilho dessa opinião. Mas é preciso considerar os diferentes graus de eficiência de uma mensagem. Isso significa ter em mente o contexto em que a mensagem deve ser transmitida e, a partir daí, escolher o registro mais adequedo. Sei que a mensagem do “aviso” foi comunicada sem maiores perturbações, mas há algo de risível na redação deste documento justamente pela incoerência entre sua pretensa formalidade e o “estilo” econômico-pródigo de sua linguagem.
Pródigo naquilo que é desnecessário. Alguém me diga por que se repetir insistentemente a expressão “do ônibus”! Talvez seja esse algum recurso retirado da poesia concreta. A insistência nos traz o ritmo do ônibus sacolejando no caminho, e termina por nos provocar enjôo. E econômico no que, do mesmo modo, não deveria ser. Faltam os complementos de alguns verbos. Por exemplo em: “não alimentar dentro do ônibus”. Não alimentar quem? Porventura as galinhas que viajam com os estudantes, empoleiradas nos maleiros.
Mas o problema mais interessante é aquele que permite a subversão dentro do próprio documento. Duas regras formam uma dobradinha imbatível: “não fazer bagunça ao entrar dentro do ônibus” e “respeitar os colegas dentro do ônibus caso estejam dormindo”. Só não se pode fazer bagunça se você estiver entrando no ônibus; respeitar o colega, só se ele estiver dormindo. Então, durante a viagem, deixe dormir os dorminhocos, faça bagunça à vontade e desrespeite os despertos. Está previsto no documento, sim senhor!
Penso que é assim que agem os advogados nos trâmites da lei. Se é válido o que está registrado com assinatura, a forma é encontrar brechas na linguagem para contrariar o sistema.
suene honorato
8 Comentários:
É, acho que o sr. Leoncio não leu o que assinou. É valida a intenção de fazer-se preservar o meio de transporte, mas atropelar a língüa de tal forma é muita imprudência para um Secretário de Transporte.
Texto bem legal, muito dinâmico e com alguns apontamentos interessantes se tomado que o mundo existe enquanto comunicação.
Na liberdade de acrescentar ao último problema abordado, a maioria das jurisprudências recorridas atualmente dão vazão à interpretação do texto, e não à leitura rígida do protocolo estipulado, justamente para se evitar atitudes de má fé e para fazer valer a superioridade da mensagem perante um texto falho.
Como o resultado final de um julgamento depende da figura mor que o delibera, o juíz, essa corrente interpretativa, todavia, não pode ser tomada como regra universal. Para se evitar tal centralismo de poder na figura de uma única pessoa é que se existe como medida paliativa a possibilidade recursos em instâncias superiores, mas, isso é uma outra história...
fala sério!!!!
ônibus!
ônibus! [2]
Parabéns!
Ótimo texto!
Ta fazendo direito, Suene? rsrsrsr
Ambigüidades à parte, seu texto explora bem as possibilidades da linguagem e, fora de contexto, a redação do texto é mesmo risível (acho essa palavra tão... tão... risível!). Mas só entende essas outras possibilidades que você apontou quem realmente não quer se adequar à boa conduta dentro do ônibus, porque o texto é inteligível e, acredito, dentro do ônibus ninguém vai explorar esses outros sentidos se não para fazer troça do texto.
Não estou defendendo texto mal escrito e cheio de ambigüidades, estou mais preocupado com a mensagem do que com o resto.
Dá boa discussão! Beijo, Suene!
"...mas, nos estreitos limites a que nos coage a gramática e a lei, ainda nos podemos mover"
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