terça-feira, outubro 17, 2006

As Faces do Alienista

Nesse domingo fui ver “O Alienista”, com a companhia Nu Escuro. Grupo respeitado na cidade, com dez anos de estrada. Antes de qualquer coisa fiquei muito feliz em saber que estavam montando o texto do Machado, pois são lapidares as questões relacionadas a loucura e a crença messiânica de Simão Bacamarte, e não apenas elas referendam a força do texto. Questões essas já excessivamente tratadas e com todo o mérito, pela pertinência temática e singularidade que o olhar de um sujeito no ímpeto positivista do séc. XIX desmonta. O texto de Machado é incisivo contra a crença positivista, é irônico, é profundo, é pateticamente decadente. O louvor ao texto não é necessário e nem encontra distinção nas minhas palavras. Vale simplesmente pela fluência, pela certeza de ter embarcado nas venturas mascaradas por Simão Bacamarte. É uma história facilmente vivida pela humanidade e, salvo os meus clichês, é a fineza das sugestões do texto que devemos absorver pra dialogar com a pertinência ou não de algo.

Vamos à peça! “Na cidade de Itaguaí, voltando de seus estudos na Europa, e dominado por um sentimento humanitário, Simão Bacamarte intenta descobrir o remédio universal para a loucura. Para tanto, constrói um sanatório em sua cidade natal: a Casa Verde...”. Eu já sabia de algumas coisas relacionadas ao espetáculo. O formato, a consultoria do Hugo Rodas, a trilha ao vivo, a porta da Casa Verde como cenário – a marca do cenário. Mas isso é extra. A peça em si se basta. E por quê? De cara você percebe o cuidado com a montagem, a responsabilidade consciente de não estragar o texto do Machado. E como teatro não é literatura simplesmente e a Nu Escuro sabe disso, o espetáculo se respalda nos seus dotes. Imediatamente há certo estranhamento e uma desconfiança: será que vai dar certo um espetáculo em que os instrumentos da trilha tomam conta da metade do palco? E não dá pra ignorar os músicos, primeiro porque eles respondem muitíssimo bem ao universo da peça, segundo porque eles não estão lá por acaso. Tem uma estrutura narrativa que dialoga com a trilha, ela conta a história junto dos três atores, eles intervêm no texto e o texto intervem na trilha, na medida em que os atores são músicos e os músicos, atores. Esse é um grande mérito. O domínio de cena dos atores e dos músicos, a medida da ênfase já é por si só louvável, principalmente em se tratando das produções da terrinha, que não contam muito com essas virtudes. Um formato bem medido conjugado a essas virtudes nos leva a um bom espetáculo.

A leitura do texto remete a formação do discurso que convence a população de que os indicativos do Dr. Bacamarte são, de fato, os mais plausíveis. A formação desse imaginário na população, mediada ali na peça pelo público, não é bem desenvolvida. Presumo que isso seja uma questão de perspectiva. E isso causa certo problema. Porque a apresentação das questões fica “manca”. Na medida em que falta um alicerce de respostas a como se sugere que tais compromissos sejam levados a cabo pela população, nós – o público – ficamos com os estereótipos arrolados pela peça. Vejam só: os estereótipos não são problemas. Pois é com eles que toda a tradição grega de teatro trabalha. Com arquétipos. O que é problema é deixá-los soltos. Um pouco soltos, eu diria. Essa primeira parte poderia ser mais zelada, para que a guerra dos discursos demonstrados posteriormente tivesse bases sólidas. Afinal é sob algum pretexto e sob algum jogo de referência e de montagem do discurso que Dr. Bacamarte faz com que todos embarquem em sua “racionalidade”. Essa que por vezes se baseia em bizarrices de conceito digno das nossas loucuras. E risos!

A formatação do espetáculo, a luz, o gestual, o figurino, a trilha, as vozes em off, todos muito bons. A musica é rica, e eu já disse que dialoga com o texto. Cristiane Perné canta sabendo do seu lugar. Sua voz à lá Elza Soares traz à tona um drama longo e delgado.

Pra mim faltou um foco de luz na tensão da guerra dos discursos e seus aparatos. Pois público tem que sair do teatro feliz com os movimentos dos atores, com música tensa e alegre, com o tratamento do texto, com os jogos de cenas, com os bonecos, com toda a infinidade que a Nu Escuro não exclui de se utilizar, mas também deve sair com uma pulga atrás da orelha e dizendo pra si mesmo sobre algo que ficou no ar ali, um tempero que foge às feições dos personagens, que está no âmbito das reflexões e comunicação de todas as “loucuras” inculcadas no homem e em sua história. Como nos trataremos?

Marcelo Brice

9 Comentários:

Às 17/10/06 16:57 , Anonymous Anônimo disse...

depois disso,
só a vontade de ter ido é o que me resta.
:/

 
Às 18/10/06 15:36 , Anonymous Anônimo disse...

bom, muito boa tua resenha meu querido, eu assisti a peça na estreia e jah tem algum tempo, mas gostei bastante. Uma coisa que vc esqueceu, o texto não eh soh de machado, do alienista, eh tambem em algumas partes de Erasmo, do Elogio da Loucura. Hugo Rodas, eh a voz da Loucura, eh a loucura que vem certos momentos da peça e se coloca ali discursivamente, coloca seu ponto de vista. Isso pra mim, foi o mais legal da narrativa recriada pela Nu Escuro. Não temos somente a visão humana, e do cientista Bacamarte, temos tambem a visão do objeto de estudo, ou seja, a propria Loucura. Outra coisa, o fato de não conhecer nenhum dos dois texto pode dificultar o entendimento do espectador, pois, não há lineariedade, e para os que já conhecem os texto eh facil amarrar os momentos e as cenas, pra quem não conhece pode ficar a sensação de despropósito.
Se você se lembra, a primeira cena eh parte do climax do texto de machado, eh o momento da revolta, quando um comerciante local lidera uma revolução contra a casa verde e contra o governo que legitimava simão. Ainda busco compreender melhor o por quê de ser essa a cena escolhida para abrir o espetaculo. O pensamento que me vem primeiro é de que os autores do espetáculo querem começar com um fato representativo. sei lá, fiquei com a sensação de que a conclusao final de simão bacamarte está muito bem representada nessa cena. Não há limites entre a sanidade e a loucura, pois vez ou outra somos levados a pensar que a loucura é natural, e é exatamente isso que a propria Loucura coloca na voz de hugo rodas. Bom, isso foram pirações num momento entre tarefas de trabalho, portanto, não tem critérios, apenas impulsos.

 
Às 19/10/06 19:54 , Anonymous Anônimo disse...

eu não acredito

 
Às 19/10/06 19:55 , Anonymous Anônimo disse...

com certesa o demo é do capeta

 
Às 19/10/06 19:55 , Anonymous Anônimo disse...

esse jornal
tem que falar mais de amor...
pois o amor é a soma de todas as virtudes... (rollin!)
como será o mundo se o amor acabar?

 
Às 20/10/06 17:36 , Blogger `´é`´ disse...

Eu sou falo de amor anônimo, de uma amor tão incomum neste tempo que as vezes recebe a alcunha de protesto, de revolta, de indignação. Mas, eu não sei falar de outra coisa que não seja de amor. Mas queria sabe em que você não acredita, caso os tres anonimos sejam a mesma pessoa.

 
Às 21/10/06 02:16 , Blogger Renato Rocha disse...

Canjica! Canjica! Canjica!

 
Às 24/10/06 17:24 , Anonymous Anônimo disse...

Éveri, muito prudente suas considerações. Valeu a lembrança pelo Elogio da Loucura. De fato deixei escapar no texto, mas como vc bem frisou o desconhecimento dos textos pode deixar o espectador meio perdido. Eu conheço o texto do Erasmo, li tem tempo já, naqueles idos tempos em que começamos com isso tudo. rs. A disposição por tratar a loucura como natural nos remete a como é construído esse julgamento nas vias discursivas da sociedade, isso pra mim é um achado. Esse tumulto que se coloca nas intervenções através da voz do Hugo Rodas dá o teor das verdades sobre a loucura.

grande abraço.

 
Às 25/10/06 15:15 , Anonymous Anônimo disse...

sem querer ser castiço, "à lá" (quando cita Elza Soares) é foda num blog produzido por pessoas que se posicionam como fãs ardorosas de literatura e da linguagem escrita em geral (e que às vezes até têm uma linguagem empolada, cheia de termos "difíceis" e sintaxe cambaleante que em nada impressionam, talvez no sentido negativo, hehe). mas, vai, estamos num site... na internet vale tudo, né?

 

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