terça-feira, outubro 24, 2006

Eliza

Envolveu-a com o braço direito, e esperou pelo olhar repreensivo.
– Não aqui. Eles estão olhando, tão sempre olhando. Fingem que não olham que é pra parecer politicamente correto, mas olham sim.
– Não me importo. E apertou o abraço.
Fitava-lhe a boca rósea. Ia beijá-la. Não pensava como Eliza. Eliza gostava de sempre agradar as pessoas. Era assim. Aluna nota 10, filha amorosa, amiga dedicada, vizinha silenciosa. Na época em que freqüentava a igreja era a primeira a se levantar na hora dos donativos.
– Eu não vou dizer de novo. Tem uns amigos da Luiza bem ali.
– E se eu te beijar, o que você vai fazer?
– Pára com brincadeira, nós temos um acordo. Você sabe bem que eu não gosto. Não em público.
Tinham se conhecido na aula de teatro. A mãe de Eliza tinha lhe dito que precisava “trabalhar a timidez” e a filha, vociferada por Nelson Rodrigues, achou que tomar parte nos atos seria experiência legal. Logo no primeiro dia, os cantos de olhos de Mariana se pousaram nessa criatura frágil, magricela, pálida de vergonha, essa menininha, descabelada, desajeitada, desconcertada. Eliza. Apaixonou-se. Por duas semanas não falou com ela. Ao fim de quinze dias caminhou 20 passos firmes até ela, parou na sua frente e com a maior confiança pronunciou, como decreto de rei: Gosto de você. Eliza coloriu-se mais branca do que de costume. Mariana saiu pela porta e não falou mais nada por outra quinzena. Normalmente era bem confiante. Tinha tomado a iniciativa com todas as ex-namoradas. Mas não sabia por que, Eliza lhe congelava o espírito e amarrava os pés, assim de um jeito bom.
– Isso é um show de rock, não o juízo final garota. Disse com tom desdenhoso.
– Não é tão fácil pra mim como é pra você. Nunca foi fácil pra mim Eliza. Mas eu me cansei de me curvar e deixar que eles ditem o que é certo ou errado. Tudo é uma ilusão. Sabia que as nuvens, o som e – o azul do mar são uma ilusão? As nuvens um tanto de ar espesso, nem dá pra pular nelas. O som uma vibração que os nossos ouvidos moleques convertem em música e o azul, um reflexo. Um reflexo.
– A outra riu-se.
Mariana sabia ser filosófica quando estava de bom humor. Era uma das qualidades que mais apreciava nela.Depois das duas semanas de espera Eliza tinha caminhado até ela no final da aula, um sorriso magro, e perguntara: Já leu Moliére? Depois desse dia não se apartaram mais. Intensos dez meses de maquiar olhares e disfarçar palavras e conter toques. Até que a mãe de Eliza descobrira. Gritos, lágrimas, dedo apontando pro meio da face. A violência e a incoerência toda. Não queria ver a filha mais. Eliza encheu o pulmão de ar e coragem e foi morar com Mariana, dividir um apartamento. Para todos os amigos e conhecidos de Eliza, são apenas amigas.
– Olha! Já estão entrando, vamos. Eliza disse serena e terna.
Beijou-a, despudoradamente.

Lídia Freitas

4 Comentários:

Às 26/10/06 10:22 , Blogger Dheyne de Souza disse...

Sempre estão olhando...

Cabe uma análise qualquer: Por que os não comentários aos textos literários? E mais: por que agora os comentários ao comentário e não ao texto literário?

 
Às 31/10/06 13:47 , Blogger Polysbela disse...

Uau.

 
Às 10/11/06 11:16 , Anonymous Anônimo disse...

Uma história recorrente a qual tento evitar.

 
Às 21/11/06 21:46 , Anonymous Anônimo disse...

belo texto...

 

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