Soft Almodóvar
Trágico, muito trágico. Mas o Almodóvar de filmes como De salto alto está um pouco diferente, como não poderia deixar de ser – é a trajetória natural da arte (e do mundo). Não nos fatos que compõem suas tramas, porque se identificam em Volver os grandes temas do diretor; mas na direção em si, na forma de apresentação e no tratamento desses temas. Antes o trágico se mostrava nos seus filmes como o grotesco que afronta nossa moralidade; em Volver ele só pode ser trágico se olhado fora do contexto. O assassinato do pai pela filha, por exemplo, não se transforma no centro das preocupações de Raimunda e não arruína a atmosfera do filme; ela o resolve da mesma maneira com que lida com outros problemas de sua vida: colocando-se à frente deles e encarando-os como uma tarefa doméstica. É assim que põe fim ao cadáver do marido: guarda-o num freezer, depois o enterra com a ajuda de uma prostituta da vizinhança à beira de um rio no caminho entre Madrid e a vila onde nasceu, e não se fala mais no caso.
Aliás, esse assassinato parece ser um pretexto para as revelações que serão desencadeadas, e que amarram o enredo colocando Raimunda como o pivô de três gerações: sua mãe, ela e a filha. Entre ela e a mãe, a semelhança de corajosamente solucionarem os próprios conflitos; entre ela e filha, a semelhança do destino, abusadas sexualmente pela figura paterna. Curioso esse “feminismo” de Almodóvar, tratado de forma tão natural que quase passa despercebido durante o filme, no sentido de que não precisa se afirmar para reivindicar sua esfera de ação, o que é muito positivo. É de humanidade que se trata.
Raimunda não é uma personagem atormentada psicologicamente pelos próprios conflitos, nem é também alguém indiferente a eles – dois extremos fáceis de se imaginar diante das peripécias pelas quais ela passa. Almodóvar e Penélope Cruz lhe conferem uma audaciosa leveza, dignas de uma personagem intrigante.
Outra qualidade do filme é a valorização da verossimilhança, e não da correspondência com o real. Se nos perguntassem se é possível que uma mulher fique escondida na casa de outra cuidando de uma doente anos a fio sem que ninguém a veja, responderíamos que não. Mas o filme o torna possível, porque se apresenta como universo fictício autônomo que regula suas próprias leis. O cinema holywoodiano, em contrapartida, parece lançar mão da verossimilhança apenas para “exagerar” a realidade, e não para apresentar-lhe outra maneira de ser.
Tudo em Volver é um pouco diferente do que se espera: seu feminismo, seus crimes, suas personagens. E nisso reside sua atração! De comum com outras histórias, tem o poder de conduzir o espectador pela mão, pistas aqui, outras ali, clímax e desfecho. Sherazade já sabia muito bem o que esse poder significa.
suene honorato
3 Comentários:
Ainda não vi o filme, mas como depois de ler essa crítica quero ainda mais ir ao cinema.
não vi 'volver' (ainda? não sei, acho que almodóvar cansou um pouco... mas woody allen também tinha cansado e amei 'match point'. enfim...), mas essa noite sonhei que estava no cinema, assistindo a 'volver' (inconsciente me mandando ver o filme?), acordei, vim dar uma passadinha por aqui depois de um tempão sem ver e... 'volver'!
saudades dos vocês que eu conheço! e beijo pra você, suene, que me deixou com vontade de ver o filme!
Almodóvar e suas mulheres maravilhosas...
E o Predruca voltou em "Volver" (perdao pelo pleonasmo) ao seu antigo estilo: Mulheres maravilhosas e os seus universos nada singelos, nenhum pouco simples... é um filme de mulheres, de mulheres que se ajudam no enfrentamento de um mundo cada vez mais cruel e, ao que parece, feito por homens e para homens... Os poucos homens que aparecem no filme ou estao em papéis bem pequenos ou surgem para morrer. É também um manifesto pela colaboraçao entre as pessoas: entre @s amig@s, entre @s vizinh@s... que belo Almodóvar... se Hollywood e suas academias têm senso estético o Oscar de 2007 já tem dono... E, ia me esquecendo, que linda é a Penélope Cruz... Apaixonei...
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