Nesta semana, li um artigo que me motiva, mais uma vez, a levantar uma velha bandeira: a de que a arte incomoda!
O jornal Mundo Jovem é uma publicação da PUC-RS destinada a jovens e adultos. Sua proposta é abordar temas relacionados à vida do jovem, numa linguagem simples e direta. É distribuído apenas para assinantes, em todo o Brasil, com tiragem de 120 mil exemplares (www.mundojovem.com.br).
Consta, na edição de março, o artigo “A arte como instrumento de inclusão social”, escrito pela cantora, compositora e pedagoga Susi Monte Serrat e pelo produtor cultural e escritor João Bello, em que se discute a arte como campo de transformação de sentimentos que pode ser fruída ou produzida por qualquer indivíduo. É assim que a arte é vista como “meio de inclusão”, pois proporciona ao sujeito a participação no todo, com o que este realiza seu papel de ator das transformações sociais. E aconselha: mesmo que não seja possível atingir certo patamar de desenvolvimento, “[...] lembre-se que há um artista dentro de você”.
Como publicação direcionada ao jovem, a proposta de simplificar a linguagem me parece eficiente. Trata-se de democratizar o acesso e de entender que este é um público, mais do que qualquer outro, ainda em formação. Porém, há que se distinguir simplificação lingüística de simplificação conteudística, confusão que, em alguns momentos, ocorre no artigo citado.
A proposta dos autores seria a de tornar a arte sedutora ao jovem, de conclamá-los à fruição estética. Mas toda sedução que se funda numa inverdade termina por corromper seu objetivo. Não é necessário citar, por exemplo, o discurso político, para comprovar que a sedução torna-se vazia na medida em que não concretiza as expectativas criadas. É um processo melindroso persuadir por meio da sedução. E há que se prestar muita atenção às estratégias utilizadas.
O artigo começa por um equívoco: o de que a arte seria diferente das demais tarefas desenvolvidas pelos diferentes indivíduos, exercidas com maior ou menor eficiência segundo suas disposições e aptidões. Sendo equivalente ao sentimento, pode ser desenvolvida por qualquer ser humano. Sim, todos nós somos passíveis de sensibilidade estética, mas a equivalência entre arte e sentimento é um tanto quanto romântica, calcada na difundida idéia de “inspiração”. Ter sentimentos não é suficiente para se produzir arte. Nesse sentido, ela é, como qualquer outra, uma tarefa, um trabalho, e exige pesquisa, disposição, disciplina, observação da realidade, relação com a tradição e com a história.
A arte exige grande medida de racionalização. Não só o exige, como age justamente neste campo. É conhecimento, embora de natureza diversa daquela do conhecimento científico, pois sua ação sobre nossa racionalidade não ocorre por procedimentos lógicos. Se a arte resulta da “transformação do sentimento e da emoção, que aflora o coração do poeta, que embala a sensação prazerosa da musicalidade, que abre os caminhos desconhecidos das telas; enfim, que redescobre a estrada e o destino das artes”, como querem os autores, então ela é alienante, pois segrega os homens em suas individualidades. Funciona como terapia (“a dor pode virar prazer de executar um instrumento”), mas não promove inclusão.
A idéia da arte como fonte de superação de problemas individuais (“mudar para ser feliz, ser feliz para mudar”) é uma falácia. Não há lugar no mundo onde encontramos maior dor do que na arte. Por isso é que Mario Quintana escreveu o seguinte poema, que gosto tanto de citar nessas ocasiões:
O poema
O poema é uma pedra no abismo,
O eco do poema desloca os perfis:
Para bem das águas e das almas
Assassinemos o poeta.
O prazer que a arte nos pode provocar é o do conhecimento, só conseguido por um processo demorado e trabalhoso: estar no mundo com os olhos abertos aos seus maiores defeitos, às suas maiores mazelas, às suas contradições; estar em contato com sensibilidades diversas – exercício de alteridade, para o qual apontam os autores em um momento, mas sem aludir à dificuldade exigida nesse processo. É uma escolha árdua e sem passagem de volta: ter consciência da alienação e do fato de não podermos nos livrar dela. Deslocam-se nossos perfis, o que, diante do espelho, deve resultar numa imagem bastante desagradável. A partir dessa desestruturação das individualidades é que nos transformamos em atores sociais.
A promessa de felicidade por meio da arte oferecida por Susi Monte Serrat e João Bello é pedagogicamente questionável. Ela parece estar em acordo com os diversos meios de facilitação do conhecimento propagandeados por aí: “aprenda inglês em dez seções”; “termine seu curso universitário em dois anos” etc. Convencer o público adolescente de que a arte vale a pena pelo que ela tem de desconcertante é tarefa trabalhosa, já que concorremos com o prazer fácil do entretenimento. Porém, a dificuldade em escolher a arte como caminho para a realização das potencialidades individuais deve ser valorizada, e não omitida. Neste caso, o nivelamento das estratégias de persuasão a partir daquilo contra o que devemos lutar desmente um ditado que anda meio esquecido: “o que vem fácil, vai fácil”.
suene honorato