Ao meu ver algumas idéias mal colocadas e fora de foco estão sendo exprimidas no debate acerca da inclusão da Filosofia e da Sociologia no ensino médio. Vou me ater a uma declaração corrente, a saber, a de que “a filosofia e a sociologia não resolvem os problemas da educação média”. Além de totalmente fora de contexto, a asseveração tem uma forte carga de má-fé e até um certo preconceito. Não se trata de colocar a filosofia como apanágio de todos os males, afinal, como já disseram Marx e Engels em A Sagrada família, “idéias nada podem realizar. Para a realização das idéias são necessários homens que ponham em jogo uma força prática”, ou para citar bem contemporaneamente meu mestre e padrinho Gonçalo Palácios, no Jornal Opção do dia 23 à 29 de Julho no ano vigente, “[Q]uem está para resolver os problemas do ensino médio são as autoridades competentes e os membros da sociedade organizada. Somos nós, ou seja, que devemos resolver nossos problemas, não disciplinas”.
Leciono Filosofia na rede estadual e tenho uma convicção: a história da filosofia não é um culto de reverência, mas uma fonte de inspiração. Não se trata de oferecer um marco teórico pronto fechado. Toda fundamentação de plano anual ou bimestral pode ser modificada à luz da prática e ao mesmo tempo, procurando avaliar e aprimorar tal prática.
Lecionar Filosofia na rede estadual é uma pequena missão socrática. E penso ser Sócrates um grande paradigma para nortear as aulas de filosofia. Inspirar em Sócrates é, através do diálogo e por ele próprio, partir da doxa – o que os gregos chamavam de opinião, que estaria ligada ao senso comum, no sentido de idéias preconceituosas, parciais e superficiais – caminhar em busca de uma episteme, ciência, ou um conhecimento mais elaborado. Logo, fazer filosofia não é doutrinação político-partidária, como querem fazer crer alguns boçais de plantão – sem capacidade de enxergar, ou que não querem enxergar, ou estão de má-fé mesmo. A atividade filosófica é em si a busca da verdade, em outras palavras, a sua eterna procura que intenta escapar do senso-comum. Professor Geraldo Faria (eterno mestre) falava em suas críticas e humanistas aulas de língua portuguesa para nós (alunos do Colégio de Aplicação da Faculdade de Educação); “pensar dói, né?” e eu achava graça... Entretanto, hoje vejo a referência socrática na expressão do mestre. A metodologia socrática tinha dois momentos, a saber, a ironia (em grego, ironia quer dizer interrogação) – Sócrates conversava com as pessoas e freqüentemente fazia perguntas, levava seus interlocutores a ver os pontos fracos de suas próprias reflexões, e assim, nesta fase do diálogo a intenção era fazê-los tomar consciência de suas respostas, isto é, das conseqüências que poderiam ser tiradas de suas reflexões, muitas vezes cheias de conceitos parciais, ou seja, idéias pré-concebidas, pré-conceituosas. O segundo momento é a maiêutica (em grego, “fazer o parto” ou “trazer à luz” – a mãe de Sócrates era parteira). Com base no primeiro momento Sócrates permitia que a outra pessoa chegasse a suas próprias conclusões. Assim, Sócrates dialogava com as pessoas criando condições para o uso da razão. Logo, essa fase do diálogo socrático, destinada a concepção de idéias era a maiêutica. Parir idéias essa era a intenção fundamental de Sócrates, ou seja, fazer pensar, refletir, assim como um parto (aqui a referência a um parto normal, claro), e isso não é coisa que se faça sem esforço. Bem, nem quero entrar em uma discussão vizinha que é a questão da motivação dos alunos – tema para um outro artigo.
No entanto, não custa lembrar que o problema da falta de vontade de refletir (aí sim papel da filosofia) é um fato vinculado ao imediatismo inerente a cultura vigente. Assim sendo, um problema demasiadamente complexo que não cabe somente aos quixotescos professores de filosofia, com sua mísera uma aula por semana em cada turma, resolver. A filosofia cumpre o papel de uma espécie de grilo falante, se portando como uma consciência critica das coisas. Talvez, poucas palavras sejam tão usadas em educação como a palavra crítica. No senso comum critica é “meter o pau” ou simplesmente falar mal. Contudo, o que significa crítica? Qual é a sua função? Qual é a relação que se estabelece entre crítica e transformação? Não tenho nesse espaço a pretensão de responder a essas questões. Para ser coerente com a minha perspectiva socrática deixo-as para a livre reflexão. Apenas, gostaria de apontar que as críticas devem, na verdade, ser ponderações, análises e reflexões cuidadosas e responsáveis, intentando sair da mera doxa; lembram do nosso filósofo? Ou seja, a crítica como uma prática de pensamento que trabalha os limites, as fronteiras do possível. Para o filósofo espanhol, Fernando Savater “A crítica desnaturaliza o mundo, o torna mais complexo, menos óbvio, mais produto de contingências que precisam ser exploradas, entendidas e transformadas. A crítica exige ver o mundo como se fosse a primeira vez. Por isso para fazer filosofia é preciso perder algo da fé nas aparências, nas rotinas, nos dogmas”.
Sempre atento para o fato de que nossos desacordos podem estar em nossas diversas visões de mundo, tendo o diálogo filosófico como uma forma de esclarecer, explicar e compreender essas diferenças, e portando revalorizar o diálogo desses desacordos, pois sem elas não teríamos filosofia, nem educação, nem política e nem seres humanos seríamos. E é a partir dessa confrontação que possibilitamos a construção de um mundo.
Para concluir, algumas citações lapidares para essa investida, a primeira de Xavier Rubert de Ventos, em seu Por que filosofia: “Filosofar é chegar a colocar em contato o que sabemos com o que sentimos, o que pensamos com o que fazemos; desconfiar das explicações que satisfazem; arriscar-se, muitas vezes, a ver mais, ou menos do que quisermos ver”. De forma explosiva Nietzsche afirmava em Humano, demasiado Humano: “Não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos seguros delas. Mas, talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las”. Para aqueles que entendem ser irrelevante o contato do jovem com o espírito filosófico, diz Epicuro, filósofo da era helenista: “nunca se protele de filosofar quando se é jovem nem se canse de fazê-lo quando se é velho, pois ninguém é pouco maduro nem demasiadamente maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de se feliz”. Para não restar dúvidas das finalidades da vida e com um pouco do lirismo poético existencialista de Fernando Pessoa: “Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer!”.
Pablo Lenine é professor de Filosofia no ensino público