segunda-feira, dezembro 11, 2006

Soft Almodóvar

O novo filme de Pedro Almodóvar, Volver, retoma a graciosidade das narrativas bem contadas, baseadas em repetições temáticas que dão sentido ao destino das personagens. O enredo está centrado no universo feminino: Raimunda (Penélope Cruz) é uma mulher aparentemente comum, trabalha o dia todo e ao chegar em casa encontra o marido desempregado. No dia seguinte, a fatalidade: encontra o marido assassinado pela filha, que ele tentara molestar.

Trágico, muito trágico. Mas o Almodóvar de filmes como De salto alto está um pouco diferente, como não poderia deixar de ser – é a trajetória natural da arte (e do mundo). Não nos fatos que compõem suas tramas, porque se identificam em Volver os grandes temas do diretor; mas na direção em si, na forma de apresentação e no tratamento desses temas. Antes o trágico se mostrava nos seus filmes como o grotesco que afronta nossa moralidade; em Volver ele só pode ser trágico se olhado fora do contexto. O assassinato do pai pela filha, por exemplo, não se transforma no centro das preocupações de Raimunda e não arruína a atmosfera do filme; ela o resolve da mesma maneira com que lida com outros problemas de sua vida: colocando-se à frente deles e encarando-os como uma tarefa doméstica. É assim que põe fim ao cadáver do marido: guarda-o num freezer, depois o enterra com a ajuda de uma prostituta da vizinhança à beira de um rio no caminho entre Madrid e a vila onde nasceu, e não se fala mais no caso.

Aliás, esse assassinato parece ser um pretexto para as revelações que serão desencadeadas, e que amarram o enredo colocando Raimunda como o pivô de três gerações: sua mãe, ela e a filha. Entre ela e a mãe, a semelhança de corajosamente solucionarem os próprios conflitos; entre ela e filha, a semelhança do destino, abusadas sexualmente pela figura paterna. Curioso esse “feminismo” de Almodóvar, tratado de forma tão natural que quase passa despercebido durante o filme, no sentido de que não precisa se afirmar para reivindicar sua esfera de ação, o que é muito positivo. É de humanidade que se trata.

Raimunda não é uma personagem atormentada psicologicamente pelos próprios conflitos, nem é também alguém indiferente a eles – dois extremos fáceis de se imaginar diante das peripécias pelas quais ela passa. Almodóvar e Penélope Cruz lhe conferem uma audaciosa leveza, dignas de uma personagem intrigante.

Outra qualidade do filme é a valorização da verossimilhança, e não da correspondência com o real. Se nos perguntassem se é possível que uma mulher fique escondida na casa de outra cuidando de uma doente anos a fio sem que ninguém a veja, responderíamos que não. Mas o filme o torna possível, porque se apresenta como universo fictício autônomo que regula suas próprias leis. O cinema holywoodiano, em contrapartida, parece lançar mão da verossimilhança apenas para “exagerar” a realidade, e não para apresentar-lhe outra maneira de ser.

Tudo em Volver é um pouco diferente do que se espera: seu feminismo, seus crimes, suas personagens. E nisso reside sua atração! De comum com outras histórias, tem o poder de conduzir o espectador pela mão, pistas aqui, outras ali, clímax e desfecho. Sherazade já sabia muito bem o que esse poder significa.

suene honorato